18 de dez. de 2010

Guardados

Fazem bem
as nostalgias e os analógicos
presos na relojoaria.
Ouvir vinis
e bem-te-vis na janela
e pequenas velharias.

Às vezes
prefiro o verso
datilografado.
Guardo amores mofados,
uns trecos,
grampos, pregos,
potes usados.

Prezo muito
este pó
sobre os retratos.
O paletó demodê
e o buraco no sapato.

Gosto de deixar
as melhores palavras
alí na caixa de rascunhos
para serem comidas por traças,
envelhecerem safras.

Gosto de passear
no cheiro grisalho dos sebos.
E do amor
que não é para agora.
Guardá-lo
num velho livro
ou naquelas caixas bonitas
que não se joga fora.

Deixa.
Que a pressa não faz bem
nem ao vinho nem ao poema.

Deixa.
Que o coração é grande
e está cheio de cacarecos.

1 de dez. de 2010

Medusa

Por um segundo
me amas.

E em tua camisa
minhas madeixas
serpentes
mambas negras
vivas
se enroscam.

Por um segundo
encaras meus olhos.
O verso
veneno via iris
tão narciso quanto meduso.

Miras o verso
por um instante
suficiente.

E em teu peito
eu
petri
Fico.

23 de nov. de 2010

Eu cedo

O que dar ao poema
que acorda?

Eu
de leite.
Um resquício
de madrugada sonhada
insiste.
Derrete no pão.

Aroma fresco
nos poros do filtro
coando
destilando flores.

Colho o trigo,
reconheço
a estação, a safra
salivando o açúcar.

A fome matinal
do poema
cede
sabe.

É cedo ainda.

13 de ago. de 2010

Marcília

Que se faça silêncio na sala
para que Marcília
pinte os cílios.
Minuciosa. Ensimesmada.

Se Marcília,
serena e sádica,
pinta os cílios desapressada,
se as pálpebras
assombradas e sombreadas
piscam
e, desacelerados,
os cílios curvilíneos
em revoada
abrem ventos e pausas no tempo...
apenas faça silêncio.

Nenhum som se emita
se os lábios entreabertos
se vestem de tons cerejais.

Se o espelho
é insuficiente
para a síntese pessegal
da face de Marcília,
só disfarce e observe a simetria.

Mas faça silêncio
para que os cílios de Marcília
não alcem vôo.

11 de ago. de 2010

No Enquanto

Beatriz presa
na geografia quântica
do Enquanto.
O corpo paira
no espaço-tempo.
Beatriz presa no purgatório.

Beatriz no mar,
cúmplice do sal.
Permitiu que o vento se esvaísse
na fresta entre dunas.

Mas não.
Beatriz não fica em banho maria.
Ela ferve ou congela
ao menor toque.
Beatriz não ameniza.
Alquímica e empírica,
ela cura a seu modo as feridas.
É dessas que passeia na chuva
e só bebe o que for intenso.
Beatriz condensa.
Eutanásica,
recusa o coma, a sobrevida.
Rejeita médias aritméticas,
meios termos.

Beatriz
presa no purgatório,
a libido no limbo.
Diabólica, fabulística,
aprende a moral da história.
Recua.
O paraíso não existe.

Beatriz no triz da carne
recusa a prisão.
De dentro do Enquanto, fez-se o pranto
e ela não mais quis.
Mergulhou
tão abissal
no verso.
Nunca mais voltou.
Desenquantou-se.

19 de jul. de 2010

# Versificado


Folha de S. Paulo, 17/07/2010 - Negócios - Matérias Primas
www.versificados.blogspot.com

15 de jul. de 2010

Concreto

Gosto da poesia
que nasce na casca do pão,
que rompe esparramando
migalhas de aroma na mesa
antes mesmo de nascer o sol.

Gosto da poesia guardanápica,
de gosto alcoólico,
soluçada no bar.
O verso exalado das camas,
nas cores vivas das vulvas.
Poesia pornodatilográfica:
filha das Olivettis.

Gosto da poesia que salta
dos calos dos dedos,
rascunhada no papel sujo
de suor e graxa.
Poesia que dói
as sedes humanas.

A poesia que nasce
suja de líquido amniótico,
que grita o parto,
que escandaliza.

Isso sim, é poesia concreta.

13 de jul. de 2010

Jazz

Teu toque
é tão grave...

É nota improvisada
que me dedilha
trepidando cordas
bambeando pernas.

Um swing segue pelo sangue.
E eu solo.

Se teu jazz me toca,
eu deixo de ser blue.

8 de jun. de 2010

Intempérie

Faça solo ou faça coro,
faça sol ou faça dó,
eu, soprano,
canto só.
Sou choro.

Faça chuva ou faça clave,
eu acho a chave
e abro o sol.

Na falta
de seta siga,
eu sigo Sade.

Se cega a faca,
se fraco o sangue,
eu sangro um soul
no seu mangue.

Caia o sol ou nasça a chuva,
faça falta ou seja breve,
salitre eu sempre levo
sob a manga.

Faça sol
ou faça sombra,
eu sofro solo,
eu faço samba.

27 de abr. de 2010

Operária

Em tua cútis,
o que aveluda?
O que muda tonalidades?
O pó não é de arroz,
é de ferro.
Restos de produção,
fina camada maquiada
de cansaço.

Em tua carne operária
despida de ferramentas
é fim de turno.

Em tua boca
sorvo o sono
e o café.

Mordo o músculo
laboral.
O lábio.
Tua tão prima matéria.
Teu insumo.

Engrenamos
entre fluidos lubrificantes.

E o que se produz
neste instante
é inalienável.